terça-feira, 22 de outubro de 2013

O olhos de vidro do meu avô


  Meu avô imaginava sempre, eu acreditava. Vencia as horas lerdas deixando o mundo invadi-lo por inteiro.   Ele hospedava essa visita sem espanto. Saboreava o mundo com antiga fome. O que seu olho de vidro não via, ele fantasiava. E inventava bonito, pois eram da cor do mar os seus olhos. E todo o mar é belo por ser grande demais. Tudo cabe dentro da sua imensidão: viagens, sonhos, partidas, chegadas, mergulhos e afogamentos. Há que se contar o desassossego que as águas nos provocam. Nunca soube se meu avô conhecia o mar. Sua cidade ficava bem no meio das minas. Sei que morava entre um mar de montanhas, um mar de paixão e um mar de dúvidas. E devia ser sem tamanho o seu olhar de vidro. Ele parecia conhecer até o depois dos oceanos. […]
   Dizem que ele viajou para São Paulo. Naquele tempo, São Paulo ficava quase em outro país. Foi comprar esse olho que não via. Ele jamais acreditou que, em terra de cego, quem tem um olho é rei.
   Venceu longos dias de estrada, poeira, lama, fantasiado de pirata, como se fosse carnaval. Tudo para conquistar um olho. Meu avô era vaidoso, mesmo sem desejar ter reinado.
Voltou com dois olhos, mas apreciando a paisagem apenas com o lado direito. Pelo olho esquerdo ele só adivinhava. Um olho era de mentira e o outro era de verdade. Mas isso não lhe trazia problemas. Cego é aquele que não quer ver. Ele via muito. Tudo no mundo é, em parte, uma verdade e, por outra parte, uma mentira.
   Com o olho direito do meu avô via o sol, a luz, o futuro, o meio-dia. Com o olho esquerdo ele via a lua, o escuro, o passado, a meia-noite. Um dia me falaram que a alma tem dois olhos. Com um, ela olha para o tempo, com o outro, ela namora a eternidade. Um olho é do amor e o outro do desamor. Mas eu não conhecia a alma. Sei que se fosse boa ia morar no ceú. Se fosse má, estaria, para sempre, no caldeirão do inferno. Aprendi isso no catecismo.

Bartolomeu Campos de Queirós . O olho de vidro do meu avô. São Paulo: Moderna, 2004. p. 6-8.


Sugestão de atividades

1. O avô fez uma viagem.
a) Para onde ele foi?
b) Por que ele viajou?
c) Como foi a viagem?
d) Explique a frase: “São Paulo ficava quase em outro país”.
e) Ao longo da viagem, o menino afirma que o avô estava “fantasiado de pirata, como se fosse carnaval”. Explique o motivo.

2. O avô, que antes tinha apenas um olho, retorna à cidade com dois olhos. Como eram esses olhos?

3. A diferença entre os olhos refletia os modos de o avô ver o mundo. Explique essa afirmação.

4. Leia as frases a seguir.

I- Precisava enviar depressa o e-mail, mas o computador estava lerdo.
II. Passos lerdos soaram nas escadas.
III. Tocava a boiada, mas alguns animais estavam lerdos, preguiçosos, e atrasavam a viagem.

a) O adjetivo lerdo poderia ser substituído nas frases, com as flexões ncessárias, por duas das palavras listadas a seguir. Identifique-as:

esperto lento interessante vagaroso educado

b) Reescreva as três frases fazendo a substituição do adjetivo assinalado por sinônimos, isto é, palavras de sentido equivalente.

5- Explique o sentido da seguinte passagem do texto:

“Vencia as horas lerdas deixando o mundo invadi-lo por inteiro.”

6. Releia a passagem completa.

“Meu avô imaginava sempre, eu acreditava. Vencia as horas lerdas deixando o mundo invadi-lo por inteiro. Ele hospedava essa visita sem espanto. Saboreava o mundo com antiga fome.”

a) De que visita fala o narrador?
b) O que o avô saboreava: uma fruta? Um doce? O mundo?

7. No texto são citados alguns provérbios populares. Agora, analise a seguinte passagem e responda.
“Ele jamais acreditou que, em terra de cego, quem tem um olho é rei.”

a) Destaque o provérbio popular e explique o seu significado.
b) Por que o narrador diz que o avô não acredita no provérbio?

8. “Tudo no mundo é, em parte, uma verdade e, por outra parte, uma mentira.” Com esta frase, o narrador amplia o sentido da experiência do avô.

a) Destaque do texto palavras e expressões que mostrem as diferentes visões do avô para cada olho.
b) O que era verdade e o que era mentira quando o avô olhava o mundo?

9. O texto é uma narrativa de memórias.
a) Quem é o narrador?
b) O texto é narrado em 1ª ou 3ª pessoa? Comprove, exemplificando.
c) Marque a resposta certa.
Os fatos narrados acontecem.
I. ao mesmo tempo que o narrador conta a história.
II. antes do tempo em que o narrador conta a história.
III. depois da narrativa; o narrador faz uma previsão para o futuro.
d) Toda narrativa se caracteriza por uma transformação principal. Qual é o grande acontecimento narrado que provoca uma transformação?
e) O narrador não conta uma história apenas. Faz também considerações e comentários acerca do que ocorre. Explique.

10. O texto é uma Autobiografia. Auto significa “de si mesmo”; biografia é a narrativa da história da vida de uma pessoa.
a) O que significa autobiografia?
b) A partir da leitura, identifique as características do gênero autobiografia.



Texto retirado do Projeto Apoema da Editora Moderna.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Ti, o pica-pau avisador


 Antigamente, quando o senhor Santo Ildefonso andava por aqui fazendo os trabalhos de Deus na Terra, ficava temeroso de que acontecesse alguma coisa aos filhos quando estivesse longe. Por isso, encarregou o pica-pau Ti de ficar tomando conta deles e avisá-los do perigos.
 O passarinho passou a fazer isso muito bem. Por qualquer coisa, voava para junto dos meninos, pousava no ombro de um deles e cantava:
 - Ti-ti-ti-ti...
 Eles já sabiam. O passarinho não estava só dizendo o seu nome. Estava era avisando de algum risco. Então, tomavam cuidado e se defendiam. Por isso, nunca tinham problemas.
 Santo Ildefonso ficou muito satisfeito. Para recompensar o passarinho Ti, fez que ele tivesse uma plumagem bonita. E também o ajudou para que nunca lhe faltasse comida. Ensinou-o a bater com o bicona casca das das árvores, cavando buraquinhos para poder pegar as lagartas e outros insetos que se escondessem lá dentro.
 Então, o passarinho passava os dias nas árvores apanhando comida para os filhotes:
 - Toque-toque-toque...
 Mas, quando era preciso avisar os filhos de Santo Ildefonso, já se sabe. O pássaro Ti ia lá, pousava no ombro de um deles e cantava:
 - Ti-ti-ti-ti...
 E eles se preveniam contra os problemas.
 O pica-pau fazia seu trabalho tão bem que o santo resolveu ser generoso e dividir os avisos de perigo com todo mundo. Disse ao passarinho:
 - Ti, você agora fica encarregado de voar por perto das estradas e veredas, avisando aos caminhantes quando houver algum perigo. Assim, eles podem se cuidar.
 O pássaro Ti passou a fazer isso, sempre muito bem. Pousava no ombro de quem passava e cantava:
 - Ti-ti-ti-ti...
 Era só o caminhante tomar cuidado e não acontecia nada de mau.
 Mas os filhos do senhor Santo Ildefonso não gostaram nada da novidade. Não queriam dividir com ninguém os avisos do pica-pau. Por isso, um dia, quando Ti chegou, os meninos cuspiram nele.
 O passarinho voou até a casa onde estava Santo Ildefonso e contou:
 - Senhor santo, veja só o que seus filhos me fizeram. Maltrataram-me e cuspiram em mim. E cuspe de gente deixa passarinho manchado. Olhe só como minhas penas ficaram todas salpicadas de saliva.
Santo Ildefonso olhou e disse:
 - Não posso fazer nada para consertar sua plumagem. Mas vou castigar meus filhos. De hoje em diante, eles não vão mais se livrar de nenhum perigo e vão ter muitos problemas. E você pode cuidar só da vida de seus filhotes. Nunca mais precisa avisar ninguém de nada.
 Por isso, até hoje, o pica-pau Ti tem as penas bonitas, mas sarapintadas. E sabe muito bem procurar comida debaixo da casca das árvores.
 Por isso, também, as pessoas correm riscos e têm problemas. Mas, às vezes, o passarinho se lembra de seus tempos de avisador e canta, embora nunca mais tenha pousado no ombro de ninguém. E até hoje, pelas estradas de Chiapas, o caminhante atento e devoto toma cuidado quando ouve o pica-pau Ti no meio de uma viagem, pois sabe que pode ter contratempos pelo caminho.


Conto inspirado numa lenda do povo tzeital, de Chiapas, no México, adaptado por Ana Maria Machado.


Como utilizar o texto em sala de aula

Para as séries iniciais

Difícil, nessa fase, é prender a atenção das crianças. Para evitar dispersões, peça que desenhem a história enquanto você faz a leitura do texto em voz alta. Com um detalhe: os alunos não podem tirar o lápis do papel. Divertida, a atividade estimula a concentração e a percepção da narrativa e possibilita melhor fluência de ideias. Experimente, depois, comparar os desenhos. Haverá, com certeza, diferenças e semelhanças interessantes entres as releituras. Nas aulas de Educação Artística, ensine a turma a fazer origamis (dobradura de papel) inspirados em elementos do conto: pássaro, árvore, índios, meninos. Outra opção é dividir a história em oito partes e a classe em oito grupos. Cada grupo deve desenhar um dos trechos em cartolinas. Monte um mural com as “obras-primas” e a história ganhará lindas ilustrações.

Para oitavo e nono anos

É sugerido que se faça uma pesquisa sobre o povo tzeltal, de onde emergiu a lenda do pica-pau avisador. Os tzeltals vivem até hoje em Chiapas, Estado mais pobre do México, e sua população é composta por vários povos indígenas. Revoltados com a misária da vida rural, eles se organizaram contra o governo mexicano e fundaram, em 1994, o Exército Zapatista de Libertação Nacional. Os zapatistas são guerrilheiros que aparecem em público usando máscaras negras de lã e cujo líder, o subcomandante Marcos, se transformou na mais famosa lenda da região. O tema rende boas discussões nas aulas de História, Geografia e Ética. Nas aulas de Português, a proposta é trabalhar diferentes leituras do texto. Que tal fazê-lo num estilo de narração de jogo de futebol, em ritmo de câmera lenta ou como se fosse um noticiário jornalístico? Se os alunos se empolgarem com essa última categoria, peça que simulem entrevistas com os personagens da história: o pica-pau Ti, os caminhantes, Santo Ildefonso (600-667, espanhol) e seus filhos ciumentos. Para arrematar a atividade, e aproveitando mensagem que a lenda oferece, organize um debate sobre egoísmo. Depois, solicite aos alunos um texto individual com o seguinte tema: “Como podemos combater o egoísmo do mundo?”


Esse texto foi retirado de uma das minhas velhas revistas Nova Escola.